27 fevereiro 2012

O Garoto Persa, por Mary Renault

"Todos os atos públicos de Alexandre que relatei se baseiam nas fontes, sendo que os mais dramáticos são os mais autênticos. Foi impossível achar espaço para todos os acontecimentos importantes, mesmo, de sua vida dispersa, ou para demonstrar toda amplitude de seu gênio. Este livro tenta apenas apresentá-lo sob um ângulo, com certos pontos de destaque.
As fontes históricas também elogiam "a moderação" de sua vida sexual. Nenhuma sugere que ele era celibatário; se o fosse, admitir-se-ia sem dúvida que era impotente; o ideal cristão da castidade ainda não aparecera. Uma opinião geral se fundamenta num impulso físico bem baixo - sem qualquer surpresa, já que tão imensas energias eram despendidas em outras atividades - associado a uma capacidade arrebatada de afeição. 
Sabemos tão pouco a respeito de seus casos de amor, em parte porque foram poucos, em parte porque ele sabia escolher; nenhuma de suas mulheres jamais o envolveu em escândalo.
Que Heféstion era seu amante parece segundo as evidencias, provável a ponto da certeza, mas não é realmente declarado em nenhuma parte. A história de Plutarco de um filho com a viúva de Memnon depois da queda de Damasco é, por razões sólidas, posta em dúvida pelos historiadores modernos, não existindo qualquer outra referência a que ele tivesse uma amante. Bagoas é a única pessoa explicitamente mencionada nas fontes como eromenos de Alexandre.
Ele aparece inicialmente em Cúrcio: "Nabarzanes, tendo recebido um salvo-conduto, encontrou-se com ele (Alexandre) trazendo grandes presentes. Entre eles estava Bagoas, um eunuco de notável beleza e em plena flor da juventude, que fora amado por Dario, e seria depois amado por Alexandre; e especialmente devido à solicitação do rapaz que ele foi levado a perdoar Nabarzanes."  Este último trecho é típico da fantasia literária de Cúrcio; o salvo-conduto mostra que Alexandre estava disposto a ouvir o relato de Nabarzanes contado por ele mesmo, não havendo dúvidas que isso decidiu a questão. Como Bagoas lhe chegou às mãos, quando ninguém da comitiva de Dario teve permissão para ficar com ele depois de sua prisão, e o próprio Nabarzanes escapou com apenas seiscentos soldados de cavalaria, não é explicado.
Existe a crença errônea moderna comum de que todos os eunucos se tornam flácidos e corpulentos. Para corrigi-la não é preciso remontar mais longe do que ao século XVIII e seus famosos castrati da ópera, cuja aparência romântica os levava a ser muito perseguidos pelas mulheres da moda. Um retrato do maior deles, Farinelli, feito no começo de sua meia-idade, mostra um lindo rosto impressionante e uma figura que muitos tenores modernos invejariam. O diarista dr. Burney, escrevendo sobre ele ainda mais tarde disse: "Ele é alto e magro, mas tem um ótimo aspecto para sua idade, é ativo e bem educado."
A história dos últimos dias de Dario encontra-se apenas em Cúrcio. É vivida e detalhada; é isenta de tendência pela qual Cúrcio é notório e provavelmente autêntica. 
Assim sendo, as cenas finais só podem ter sido fornecidas a algum cronista anterior por um dos eunucos de Dario, que foi a última testemunha; é razoável admitir que pelo próprio Bagoas. Com seu lugar privilegiado na corte, ele deve ter sido conhecido de todos os historiadores contemporâneos de Alexandre. 
A história a seguir faz referência a Bagoas seis anos depois, quando o caso do beijo no teatro é contado tanto por Plutarco quanto por Ateneu.  A localização em Carmânia é extremamente importante; ali Alexandre só tinha consigo os que o acompanharam através da Índia e da marcha no deserto. Depois de todas essas vicissitudes, Bagoas ainda não somente gozava da grande afeição de Alexandre, mas evidentemente era bem estimado até pelas xenófobas tropas macedônias, por si mesmo surpreendentes. Alexandre sempre pagava com lealdade eterna uma devoção pessoal e isso parece mais a provável explicação para esta ligação tão longa.
A origem do jovem eunuco é ignorada; mas a conjectura de que era de nascimento nobre não é pura fantasia.
Os meninos, cuja aparência era bem cuidada e não estragada pela desnutrição ou provação, uma vez escravizados, corriam sempre o risco da prostituição. O discípulo de de Sócrates, Fédon, é o caso mais conhecido.
O último aparecimento de Bagoas foi irreparavelmente deturpado por Cúrcio; nem com a máxima boa vontade é possível aceitá-lo. Felizmente para a reputação de Bagoas, temos o testemunho abalizado de Aristóbulo, o arquiteto que de fato restaurou o túmulo de Ciro para Alexandre, de que ele foi lá quando esteve a aprimeira vez em Persépolis, viu ele mesmo os bens tumulares valiosos e fez Aristóbulo inventariá-los, cuja descrição é preservada por Arriano, juntamente com seu relato da profanação. Em Cúrcio, Alexandre só vai ao túmulo em seu regresso da Índia e acha-o desguarnecido porque Ciro fora enterrado somente com suas armas simples; uma concepção que certamente agradaria o sentimento romano, mas surpreenderia um arqueólogo. 
Bagoas, que tinha um despeito por Orxines por não ter lhe enviado um suborno, inventa um tesouro inexistente e o acusa de roubo. Nenhum dos crimes pelos quais Orxines foi de fato punido é mencionado; ele é considerado uma vítima inocente. Quando se tira o impossível dessa história, resta pouca coisa. Admiti que Bagoas entrou de certo modo em cena, tendo algum ressentimento contra o sátrapa com o qual Alexandre simpatizou. Em vista da relação de crimes de Orxines, supus o rancor mais comum do mundo antigo, uma rixa familiar.
O sensacionalismo estonteante de Cúrcio, um homem insuportavelmente bobo com acesso a fontes preciosas agora perdidas para nós, que ele desperdiçou na causa de um conceito literário tedioso sobre a deusa Fortuna e muitos exercícios floridos de retórica romana. (Alexandre exortando os amigos amavelmente a extraírem a flecha enfiada em seu pulmão, é impressionantemente eloquente.) Como as graças da Fortuna conduzem ao hybris e nemesis, a história de Alexandre é torcida nesse sentido, recorrendo-se aos materiais subversivos atenienses anti-macedônicos, escritos por homens que nunca o viram e tendo tanta relação com a verdade objetiva como se poderia encontrar numa história do povo judeu encomendada por Adolfo Hitler. Isso foi revivido no tempo de Augusto, por Trogo e Diodoro, que encontram num rei morto há três séculos um seguro bode expiatório para as pretensões do governante vivo. Nenhuma tentativa é feita em coerência com os fatos incontestáveis. Um tirano corrupto teria sido trucidado pelos rebeldes de Ópis no momento em que se metesse com eles; poderiam ter feito isso com perfeita impunidade (o destino de mais um imperador romano) e eleito um novo Rei, como era direito deles. que eles, em vez disso, reclamaram de Alexandre por não terem permissão para beijá-lo, não é ficção, mas história.
No que concerne ao mundo antigo, os motivos políticos dessas tentativas inconvincentes de mostrar Alexandre corrompido pelo sucesso são bastante claros. Mais mistificante é a deflagração hodierna do que se pode chamar de desmoralização, já que ultrapassa a interpretação unilateral dos fatos, dada a sua completa deturpação. 
Uma vulgarização recente diz apenas a respeito da execução de Filotas que foi baseada "numa acusação forjada", embora sua não revelação da conspiração de assassinato seja admitida por todas as fontes (qual seria a situação de um guarda de segurança moderno que, informado que havia uma bomba no avião da Rainha, resolvesse não comunicar?) Heféstion é "fundamentalmente estúpido", embora em nenhuma de suas missões independentes de grande responsabilidade, diplomáticas como também militares, ele tenha fracassado. Alexandre é claramente acusado de tramar a morte do pai, embora não somente as provas, literalmente, sejam nulas; Filipe não tinha sequer outro herdeiro viável para proporcionar o motivo. "alcoolismo extremo" é alegado como tendo precipitado o fim de Alexandre; qualquer clínico geral poderá explicar qual é a capacidade de trabalho de um alcoólatra, e qual a sua possibilidade de sobreviver a uma perfuração de pulmão, cirurgia de campo sem anestesia e uma marcha no deserto. Depois do gesto da tropa no leito de morte de Alexandre, um acontecimento único na história, é um tanto espantoso dizer que pouca gente pranteou sua morte. Que haja manifestações de admiração e desmerecimento é inevitável; elas não devem porém ser emitidas a expensa da verdade.
Com o mesmo espírito, os motivos mais sinistros teem sido procurados para sua política de fusão racial. Contudo, ninguém se preocupou menos em esconder suas aversões como ele; é berrantemente óbvio que, uma vez entre os persas, ele simplesmente verificou que gostava deles. 
Certamente em nosso tempo só mesmo uma mente muito tacanha achará isso desabonador ou estranho.
Embora as legações do desarranjo mental completo de Alexandre não sejam muito sólidas, parece haver pouca dúvida de que ele sofreu uma séria perturbação mental logo depois da morte de Heféstion. Se tal prostração teve recaídas, não se pode saber. A natureza de Alexandre é uma espécie de mola automática. 
As tensões de sua meninice exigiam compensação na realização; a realização acumulava responsabilidades, ao mesmo tempo sugerindo novas realizações; a espiral ascendia inexoravelmente e não se pode ter certeza que esse processo continuaria durante um período de vida normal sem consequências desastrosas. Talvez as palavras de despedida de Calano fossem mais uma promessa do que um aviso.
Bury e outros historiadores frisaram a ligação entre o fornecimento de água contaminada e a ingestão mais frequente de vinho no exército. Aristóbulo, que esteve na corte durante o reinado de Alexandre, diz que seu habito comum era ficar sentado conversando e tomando vinho noite adentro, mas sem embriagar-se. Segundo Plutarco, ele ficava um tanto eufórico no fim da reunião; um fenômeno que pode ser observado hoje nas pessoas não dadas a excesso. As bebedeiras ocasionais eram, porém, caracteristicamente macedônicas, como já encontramos antes da acensão de Alexandre. 
Os boatos de que ele foi envenenado, predominantes durante séculos após sua morte, não condizem com o relato clínico detalhado de sua última doença. Sua perda de voz sugere a complicação fatal mais comum até a descoberta dos antibióticos - pneumonia. A pleurisia teria sido uma consequência certa em vista de seu ferimento pela flecha dos malos. 
Aristóbulo diz que quando Alexandre tinha febre alta bebia vinho e ficava delirando; não se diz que o tinha pedido. Se lhe foi maliciosamente transmitido que Alexandre havia sido, falando sob o ponto de vista moral, envenenado, a presença de um inimigo mortal como Cassandro não poderia passar despercebida.
Cúrcio manteve a história de que o corpo de Alexandre foi encontrado indecomposto, apesar do calor do verão e da longa demora em chamar-se os embalsamadores, devido ao caos que seguiu à sua morte. O período dado, seis dias, é sem dúvidas absurdo; mas é bem possível que uma coma profunda tenha enganado os observadores muitas horas antes de ocorrer sua morte clínica. Os embalsamadores fizeram seu trabalho com proficiência. Augusto Cézar, visitando seu túmulo em Alexandria, admirou a beleza de suas feições trezentos anos depois.
O relato do fim de Heféstion sugere que ele teve tifo, em que, embora o apetite às vezes retorne antes das lesões do intestino sarararem, o alimento sólido causa perfuração e colapso rápido. Em nosso próprio século, pacientes de tifo teem morrido no hospital devido ao gesto imprudente de parentes irresponsáveis que lhes levam clandestinamente alimento. A galinha cozida de Heféstion, do tamanho de uma garnizé moderna, seria mais do que suficiente.
Segui Arriano no que diz respeito à conspiração dos escudeiros, exceto no que concerne à minha própria dedução de que as cartas de Aristóteles foram encontradas entre os papéis de Calístenes. A correspondência amigável entre Alexandre e seu tutor cessou a partir dessa época.
A figura romântica de Roxane não tem sido tratada com um ceticismo infundado. Não há necessidade de deixar de considerar o casamento como político; sua posição era média, e sua beleza famosa. Mas, uns dois meses depois, os escudeiros podiam contar que iriam encontrar Alexandre na cama sem ela; e sabemos o que ela fez quando Alexandre morreu. Não pode perder tempo em prantear o morto. Enviou, com tal rapidez que se adiantou à notícia, uma carta à esposa real de Alexandre, Estatira, escrita no nome dele, chamando-a imediatamente á Babilônia; e mandou matá-la assim que chegou.
Sisigâmbis, a Rainha-Mãe da Pérsia, quando soube da morte de Alexandre, despediu-se da família, trancou-se sem alimento e morreu cinco dias depois.
A Mitra Real da Pérsia, cujo uso por Alexandre causou tanta controvérsia, não tinha semelhança  com a mitra moderna da Igreja, mas assentava na cabeça como um capacete, com abas grandes nos lados e atrás. Tinha uma coroa em forma de pico, que os sátrapas usavam achatada; usá-la vertical era sinal de realeza. Era cingida por um diadema de fita rosa.
Acontecimentos de que não me ocupo neste livro, ou que Bagoas não podia saber, teem sido levados em conta nas biografias de Alexandre. É preciso ter em mente hoje que somente mais de um século depois foi que um punhado de filósofos começou mesmo a discutir a moralidade da guerra. 
Em seu tempo a questão não era se, mas como se fazia a guerra. 
É digno de nota que os historiadores mais favoráveis a ele, Ptolomeu e Aristóbulo, foram os que o conheceram em vida. Escreveram quando ele já havia morrido, sem outro incentivo senão o de fazer justiça. 
Mesmo levando em conta seus defeitos (aqueles que seus próprios tempos não consideravam como virtudes), resta-nos o fato de que nenhum outro ser humano atraiu no curso de sua existência, de tantos homens, uma devoção tão fervorosa. Suas razões merecem ser examinadas.
Fontes para o leitor:
A melhor é Arriano, que se baseou principalmente nas memórias perdidas de Ptolomeu e Aristólubo e escreveu com grande senso de responsabilidade. Plutarco também apresenta um trabalho vívido, mas se esforça pouco para avaliar a sua evidência e não merece muito crédito."


Nota da Autora que encerra o livro O Garoto Persa, escrito por Mary Renault, com tradução de Carlos Nayfeld publicado pela Editora Artenova S A em 1974.


A gravura que escolhi para ilustrar este texto  representa a rendição do rajá indiano, Poro (mais de 2 metros de altura), a Alexandre, após a batalha em que Poro lutou bravamente mas foi ferido no ombro e derrotado. 
Depois da rendição Alexandre confirmou-o no posto de sátrapa e acrescentou mais território para ele administrar, contrariando assim o inimigo de Poro, Taxiles, que havia peticionado a Alexandre a destruição Poro. 
A Taxiles só restou fazer as pazes com Poro. 

24 fevereiro 2012

Ivan Ferreti Convida, Angela Togeiro Divulga


No dia 25 de fevereiro de 2012 (Sábado), a partir das 15 horas, o Grupo
Cataversos da Mooca estará comemorando o seu 2º Aniversário e é com grande satisfação que convidamos você, seus amigos e familiares para compartilharem conosco esse momento contagiante de mais um ano de vida.
Venha e traga a sua poesia, a sua música, a sua dança e toda energia positiva que couber dentro de você.
O local da festa é no Núcleo de Terapias Flor de Lótus, Rua Guaimbé, 48, na Mooca. Pegar ônibus Mooca no Metrô Bresser e descer no final (Percurso de aproximadamente 15 minutos).
Pedimos a quem puder que traga um prato de doce ou salgado para enchermos a pança assim que terminar o Sarau. O refrigerante, o chá e o café são por conta dos anfitriões.
A entrada é gratuita e o evento é aberto a todos que queiram participar.
Haverá sorteio de brindes durante o evento. 
Aceitamos doações de livros para o sorteio.
Grupo Cataversos da Mooca - No bairro mais romântico de São Paulo. O sarau mais charmoso da cidade” 


Atenciosamente,
Ivan Ferretti Machado
 Cel. 9106-0948

20 fevereiro 2012

É de Wilde

    - Ela disse que dançaria comigo se lhe trouxesse rosas vermelhas - exclamou o jovem Estudante -, mas em todo meu jardim não há uma única rosa vermelha.
     Lá do seu ninho, no carvalho, ouviu-o o Rouxinol e,  espiando-o por entre as folhas, ficou pensativo.
     - Nem uma rosa vermelha em todo meu jardim! - exclamou o jovem, e seus belos olhos se encheram de lágrimas - Ah! Como a felicidade depende de coisas insignificantes! Li tudo o que os sábios escreveram e possuo todos os segredos da filosofia, mas minha vida de tornou insuportável por falta de uma rosa vermelha.
     - Eis aí, finalmente, um amante verdadeiro - disse o Rouxinol. - Noite após noite, cantei-o, apesar de não o conhecer: noite após noite contei sua história às estrelas e agora o vejo. sues cabelos são escuros como a flor do jacinto e seus lábios são vermelhos como a rosa que almeja; mas a paixão tornou seu rosto pálido como o marfim e o selo da tristeza marcou-lhe a fronte.
     - O Príncipe dará um baile amanhã à noite - murmurou o jovem Estudante - e minha amada estará entre os convidados. Se lhe levar uma rosa vermelha ela dançará comigo até a madrugada. Se lhe levar uma rosa vermelha, eu a terei entre meus braços, ela apoiará a cabeça em meu ombro e eu estreitarei sua mão na minha. Mas não há nem uma rosa vermelha em meu jardim e portanto ficarei sentado, solitário, e ela passará por mim sem reparar. Não me dará atenção e meu coração irá se partir.
     - Eis aí realmente um verdadeiro amante - disse o Rouxinol. - sofre o que apenas canto: o que para mim é alegria para ele é dor. Certamente o Amor é uma coisa maravilhosa. É mais precisos do que esmeraldas e mais valorizado do que lindas opalas. Pérolas e granadas não podem comprá-lo, nem se encontra à venda no mercado. Não pode ser adquirido de mercadores, nem ser aferido na balança, como se fosse ouro.
    - Os músicos sentar-se-ão na galeria - disse o jovem estudante - e irão tocar seus instrumentos de corda e meu amor dançará ao som da harpa e do violino. Dançará com tanta leveza que seus pés não tocarão o piso e os cortesãos em seus trajes festivos irão se aglomerar à sua volta. Mas comigo não dançará, pois não tenho uma rosa vermelha para lhe ofertar.
     - Por que está chorando? - perguntou uma pequena Lagartixa Verde, ao passar correndo por ele com a cauda no ar.
     - Sim, por quê? - disse uma Borboleta que esvoaçava, à procura de um raio de sol.
     - Sim, por quê? - murmurou uma Margarida à sua vizinha em voz baixa e suave.
     - Ele está chorando por causa da rosa vermelha - disse o rouxinol!
     - Por uma rosa vermelha! - exclamaram - Que ridículo! - E a pequena Lagartixa, que era um tanto irônica, riu-se às gargalhadas.
    Mas o rouxinol compreendeu o segredo da tristeza do Estudante e permaneceu silencioso no carvalho, meditando sobre os segredos do Amor.
     Subitamente abriu as asas escuras para voar e lançou-se no espaço. Passou pelo bosque como uma sombra e como uma sombra atravessou o jardim.
    No centro do gramado erguia-se uma linda Roseira e, quando a viu, voou para ela e passou sobre um de seus ramos.
    - Dê-me uma rosa vermelha - exclamou - e eu cantarei para ti minha mais bela canção.
    Mas a Roseira meneou a cabeça.
    - Minhas rosas são brancas - respondeu - tão brancas como a espuma do mar e mais brancas do que a neve na montanha. Mas vá até minha irmã que floresce ao redor do velho relógio solar e ela dar-te-á o que desejas, talvez.
     Então, o rouxinol voou até a Roseira que crescia em torno do velhos relógio solar.
     - Dê-me uma rosa vermelha - exclamou - e eu cantarei para ti minha mais bela canção.
Mas a roseira meneou a cabeça.
    - Minhas rosas são amarelas - respondeu; tão amarelas como os cabelos da sereia que repousa no trono âmbar e mais amarelas do que o narciso que floresce no prado antes que o camponês chegue com a foice. Mas vá até minha irmã que floresce sob a janela do estudante e talvez ela te dê o que desejas.
Então o rouxinol voou para a Roseira que florescia sob a janela do Estudante.
     - Dá-me uma rosa vermelha - exclamou - e eu cantarei para ti minha mais bela canção.
     Mas a Roseira meneou a cabeça.
    - Minhas rosas são vermelhas - respondeu-, tão vermelhas como os pés da pomba e mais vermelhas do que os imensos leques de coral que ondulam sem cessar nas cavernas do Oceano. Mas o inverno gelou minhas veias, a geada destruiu meus botões, a tempestade quebrou meus ramos e não darei uma só rosa o ano inteiro.
     - Uma rosa vermelha é tudo o que desejo - exclamou o Rouxinol -, apenas uma rosa vermelha! Não haverá um meio de consegui-la?
    - Há um meio - respondeu a Roseira -, mas é tão terrível que não me atrevo a dizê-lo.
     - Dize-me -disse o rouxinol - não tenho medo.
     - Se queres uma rosa vermelha - disse a Roseira - deves criá-la com a tua música à luz do luar e tingi-la co o sangue do teu próprio coração. Deves cantar para mim com o peito apoiado num espinho.
Deves cantar a noite inteira para mim e o espinho deverá atravessar teu coração e o sangue de tua vida deverá correr em minhas veias e tornar-se meu.
     - A morte é um preço muito alto para pagar por uma rosa vermelha - exclamou o Rouxinol - e a Vida é muito preciosa para todos. É tão agradável pousar na mata verde e contemplar o Sol em sua carruagem dourada e a Lua em sua carruagem de pérola. Doce é o perfume do espinheiro e doces são as campânulas que se abrigam no vale, e a urze que tremula na colina. Mas o Amor é melhor do que a Vida, e o que é o coração de um pássaro comparado com o coração de um homem?
     Então abriu as asas escuras e lançou-se no espaço. voou pelo jardim como uma sombra e como uma sombra atravessou o bosque.
     O jovem Estudante ainda jazia sobre a relva, onde o havia deixado, e a s lágrimas não haviam ainda secado em seus belos olhos.
    - Sê feliz - exclamou o rouxinol -, sê feliz; terás tua rosa vermelha. Eu a criarei com meu canto à luz do luar e a tingirei com o sangue de meu próprio coração. tudo o que te peço em troca é que sejas um amante verdadeiro, pois o Amor é mais sábio que a Filosofia, por mais sábia que esta seja e é mais forte que o Poder, por mais poderoso que este seja. Suas asas teem cor de chama e seu corpo cor de fogo. sues lábios são doces como o mel e seu hálito é como incenso.
     O Estudante ergueu a vista da relva e escutou, mas não podia compreender o que o Rouxinol estava lhe dizendo, pois apenas conhecia as coisas escritas nos livros.
     O Carvalho, porém, compreendeu e ficou triste, pois gostava muito do pequeno Rouxinol que havia construído o ninho em seus ramos.
     - Canta-me uma ultima canção - murmurou - ficarei muito solitário quando tiveres partido.
então o Rouxinol cantou para o Carvalho e sua voz lembrava a água borbulhando de uma jarra de prata.
     Quando  terminou sua canção o Estudante levantou-se e tirou do bolso um caderno de anotações e um lápis.
     - Tem estilo - disse a si mesmo, enquanto se afastava através do bosque -, não podemos negá-lo; mas terá sentimento? Receio que não. De fato, é como muitos artistas; somente estilo, sem nenhuma sinceridade. Não se sacrificaria pelos outros. Pensa apenas na música e todos sabem que artes são egoístas. Contudo, devemos reconhecer que possui belas notas em sua voz. Que pena elas nada significarem ou terem alguma utilidade.
     E entrou em seu quarto, deitou-se em pequeno catre e começou a pensar em sua amada; e, pouco tempo depois, adormeceu.
    Quando a lua brilhou nos céus o Rouxinol voou atá a Roseira e colocou seu peito contra o espinho. Cantou a  noite inteira com o peito contra o espinho e a fria Lua de cristal inclinou-se e pôs-se a escutar. Cantou a noite inteira e o espinho se aprofundava cada vez mais em seu peito enquanto se esvaia o sangue de sua vida.
     Primeiro cantou o nascimento do amor no coração de um rapaz e de uma moça. E no ramo mais alto da roseira desabrochou uma rosa maravilhosa, pétala após pétala, à medida que uma canção seguia a outra. a princípio ela era pálida como o nevoeiro que repousa sobre o rio - pálida como os pés da manhã e prateada como as asa da aurora. Semelhante à imagem de uma rosa num espelho de prata, semelhante ao reflexo de uma rosa numa lagoa, era a rosa que florescia no ramo mais alto da Roseira.
    Mas a Roseira bradou ao Rouxinol que se comprimisse mais contra o espinho.  - Comprima-te mais, pequeno rouxinol - bradou a Roseira - ou o Dia virá antes que a rosa esteja terminada. 
    Então o Rouxinol comprimiu-se mais contra o espinho e seu canto se tornou cada vez mais sonoro, pois cantava o nascimento da paixão na alma de um homem e de uma donzela.
     E um delicado matiz róseo apareceu nas pétalas da rosa, como o rubor na face do noivo quando beija os lábios da noiva. Mas o espinho ainda não havia atingido o coração do Rouxinol e, portanto, o coração da rosa permanecia branco, pois somente o sangue do coração de um Rouxinol poderia enrubescer o coração de uma rosa.
    E a roseira bradou ao Rouxinol para que se comprimisse mais contra o espinho. - Aperta-te mais pequeno rouxinol - bradou a Roseira - ou o dia virá antes que a rosa esteja terminada.
    E o Rouxinol se estreitou mais contra o espinho e o espinho atngiu seu coração e uma dor cruciante atravessou-lhe ao peito.
Quanto mais acerba era a dor, mais arrebatado se tornava seu canto, pois cantava o Amor sublimado pela Morte, o Amor que não acaba no túmulo.
E a rosa maravilhosa começou a tornar-se rubra, como a cor do céu nascente. Rubra era a coroa de pétalas e rubro como um rubi o coração.
    Mas a voz do Rouxinol foi-se tornando mais fraca, suas pequenas asas começaram a palpitar e um véu cobriu-lhe os olhos. Sua canção tornou-se cada vez mais débil e sentiu que algo lhe cerrava a garganta.
Então lançou uma derradeira onda de música. A lua branca a ouviu e, esquecendo a madrugada, permaneceu no céu. A rosa vermelha a ouviu e, extasiada, estremeceu inteira, abrindo suas pétalas ao ar frio da manhã. O eco levou a canção à sua caverna cor de púrpura nas colinas, despertando dos sonhos os pastores adormecidos. Flutuou pelos juncos do rio e estes levaram sua mensagem ao mar.
    Mas o Rouxinol não respondeu, pois jazia morto entre as altas hastes da relva, com o espinho cravado no coração.
    Ao meio-dia o estudante abriu a janela e olhou para fora.
    - Que sorte maravilhosa tive! - exclamou- Eis aqui uma rosa vermelha! Nunca vi rosa igual em toda minha vida.  É tão bela que certamente deve ter um nome comprido em latim.
    E inclinando-se colheu-a.
    Então pôs o chapéu e correu para a casa do Professor, com a rosa na mão.
    A filha do Professor estava sentada à porta, enrolando seda azul numa dobadoura, com o cãozinho deitado a seus pés.
    - Disseste que dançarias comigo, se te trouxesse uma rosa vermelha - exclamou o estudante -. eis aqui a rosa mais vermelha do mundo. Irás usá-la hoje à noite perto do coração e, enquanto dançamos, ela te dirá quanto te amo.
    Mas a moça franziu as sobrancelhas.
    - Receio que a rosa não vá combinar com meu vestido - respondeu - e, além disso, o sobrinho do Camarista enviou-me jóias verdadeiras e todos sabem que jóias custam mais do que flores.
    - Palavra de honra, és muito ingrata - disse o estudante, com raiva. E atirou a rosa na rua, onde caiu na valeta e foi esmagada por uma roda de carro. 
    - Ingrata! -disse a moça -. És muito grosseiro, ouvistes? E, afinal de contas, quem és? Apenas um Estudante. Creio que não tenhas nem mesmo fivela de prata nos sapatos, como o sobrinho do Camarista.
    E levantou-se da cadeira e entrou em casa.
    - Que coisa estúpida é o Amor - disse o Estudante, ao se afastar. - Não é nem metade tão útil quanto a Lógica, pois não prova nada e está sempre falando de coisas que não irão acontecer, fazendo-nos acreditar em coisas que não são verdadeiras. Na verdade, não é nada prático, e como nesta época ser prático é tudo, voltarei à Filosofia e estudarei Metafisica.
    E retornando a seu quarto, tirou da estante um grande livro empoeirado e começou a ler.


Oscar Wilde - O Rouxinol e a Rosa, tradução de Sigrid Renaux para 
O Mundo e Suas Criaturas, Uma antologia do Conto Irlandês 
organizado por Munira Mutran, publicado pela Associação Editorial HUMANITAS
Foto: Cristo Velado, escultura de Raimondo Di Sangro, para a Capela de Sansevero - Nápoles

08 fevereiro 2012

O que vês?

     Para Tomás de Aquino, o que norteia a obediência às leis é a reverência e o amor a Deus, que deve ser refletido nas pessoas aqui neste mundo de forma racional e construtiva, sem o qual, tal atitude será apenas servil. Na Suma Teológica, Tomás de Aquino afirma que "...o fim do governo divino é sua própria bondade. Portanto, como nada pode existir que não seja ordenado para a divina bondade, como a um fim; assim é impossível existir um ente que se subtraia ao governo divino." Logo, a obediência às leis para Tomás devem ter como principio o querer divino que se manifesta na ordem, que alcança tanto governantes quanto governados.
     Quando o governante, por exemplo, perverte essa ordem, e não se põe nas condições identificadas pelo doutor Angélico, ou mesmo pela aplicação das leis injustas (S. Th. 1,2,9.96 a/4,C), os governados não lhe devem obediência. Eis que, no caso, estaria o governante na condição de usurpador e desobediente aos princípios divinos. Como afirma Pedro, o apóstolo, e, atos 5.29: "é preciso obedecer antes a Deus do que aos homens". Consoante a doutrina de Tomás de Aquino, "a lei humana tem valor de lei enquanto está de acordo dom a reta razão". Caso os legisladores e governantes prescrevam contra a ordem moral de Deus, suas prescrições não podem obrigar os cidadãos e "chama-se lei iníqua e, como tal, não tem valor de lei, mas é um ato de violência" (S. Tomas de Aquino, S Th., I-II, 93, 3 ad 2).
     Infere-se da doutrina de Aquino que a lei pode não apenas ser um ato de violência, mas geradora de violência, uma vez que suas prescrições podem vir destituídas da moral divina, e, como tal, formulada para atender apenas o interesse de alguns. No concernente aos defeitos da lei, a questão 92 da suma Teológica, propõe as seguintes questões: "1. Se é efeito da lei ordenar, proibir, permitir e punir, como diz o jurisconsulto (Digesto, I, t. III, 1.7, KRI, 34a)." Após as considerações de Tomás no artigo I, sobre estas questões, temos a resposta objetiva:
Resposta: Deve dizer-se, como disse acima (q. 90, a.1, ad 2), que a lei não é senão o ditame da razão naquele que preside e por quem são governados os súditos. Ora, é virtude de qualquer súdito sujeitar-se bem àquele por quem é governado, como veremos ser virtude do irascível e do concupiscivel bem obedecer à razão. Deste modo, pois, "é virtude de cada súdito sujeitar-se ao príncipe", como diz o Filósofo na Política. É para isso, com efeito, que é ordenada cada lei, para ser obedecida pelos súditos. Donde ser manifesto que é próprio da lei induzir os súditos à virtude que lhes é própria. Sendo, pois, a virtude "aquilo que faz bom o que possui", segue-se que é efeito próprio da lei fazer bons aqueles aos quais é dada, de modo absoluto ou relativo. assim, se a intenção de quem promulga a lei tende para o verdadeiro bem, que é o bem comum regulado segundo a divina justiça, segue-se que pela lei os homens se tornam bons pura e simplesmente. Se, porém, a intenção do legislador for apnas algo que não seja o bem pura e simplesmente, mas o que lhe é útil e agrdável, ou que repugna a justiça divina, então a lei não faz os homens bons, pura e simplesmente, mas de certo modo, ou seja,  em conformidade com um tal regime. Dessa forma, encontra-se algum bem mesmo no que é por si mau, como se diz ser alguém um bom ladrão por agir adequadamente para seu fim.
     Parece que Aquino não tem como fulcro a lei em si, mas a sua motivação, a sua finalidade, tanto da parte daquele que governa, quanto daquele que obedece. Há que se conformar sempre com a justa razão, portanto: Causa et radix humani boni est tardia ( A causa do bem humano é a razão).
Extraído do artigo do Mestre em filosofia, Jucelino Vieira Mendes em Filosofia do Direito, na revista Filosofia - Editora Escala
Foto: Leão no Mama Tau.
Como nos equilibramos entre o antes e o depois? Maria rita Kehl responde, clique no título ou aqui: http://youtu.be/eR6Axj-Bxbo